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“NÃO DEIXE NINGUÉM TE IMPEDIR DE ABRIR UMA STARTUP”

TEXTO MARISA ADÁN GIL

O melhor momento para fundar a sua empresa é agora. Mesmo que “agora” seja no meio de uma pandemia global e durante uma crise econômica sem precedentes no país. Essa é a opinião do empreendedor serial, investidor e guru do Vale do Silício Marc Randolph, de 63 anos. Fundador da Netflix ao lado de Reed Hastings, ele lançou os fundamentos daquela que viria a ser a líder de streaming em todo o mundo, com mais de 200 milhões de assinantes. Depois de deixar a empresa, investiu em dezenas de startups e fundou a Looker Data Sciences, que acabou sendo vendida para o Google, em 2019, por US$ 2,6 bilhões. Hoje, dedica a maior parte do seu tempo a mentorar fundadores, presencialmente ou em seu novo podcast, que leva o nome de That Will Never Work (“Isso nunca vai dar certo”), também título de seu maior best-seller. Em entrevista exclusiva à PEGN, ele explica quais os principais erros dos empreendedores e conta o que as startups devem fazer para crescer e revolucionar setores inteiros, mesmo — ou especialmente — durante a pandemia.

Quando você saiu, a Netflix ainda não era a gigante que é hoje. Como vê sua contribuição para o sucesso da empresa?

É verdade, a Netflix de hoje não se parece nem um pouco com o que era quando eu e Reed [Hastings, cofundador] começamos. Em 1996, ainda não era possível transmitir conteúdo por streaming. Então, nos primeiros tempos, o que fazíamos era mandar DVDs pelo correio. E esse foi o modelo de negócio por muitos anos. Ouvimos de muita gente que a Netflix não ia funcionar, porque concorria com locadoras como a Blockbuster e porque ficaria obsoleta quando o streaming chegasse. Mas o que fizemos foi construir uma empresa focada em conteúdo. Nosso objetivo era, e sempre foi, descobrir boas histórias e levá-las para o consumidor, de maneira customizada e em um modelo por assinatura. Sabíamos que o importante era ajudar as pessoas a encontrar conteúdo de qualidade, e daí não importava de que maneira esse conteúdo seria transmitido. A Netflix não teve nenhum problema em mudar o modelo de negócio quando o streaming se tornou possível, porque as bases já estavam lançadas. Outra coisa que nunca mudou foi a cultura da empresa. Uma das revelações que tive na Netflix é que o melhor modo de atrair e reter profissionais interessantes não é dar comidinhas de graça. Tudo que você tem de fazer é tratar as pessoas como adultos. Confiar nos funcionários para que tomem decisões. Dar a eles a liberdade para resolver problemas. Essa segue sendo a cultura da Netflix até hoje.

Você se arrepende de ter deixado a empresa?

Não mesmo. Veja bem, eu tenho sorte, porque descobri muito cedo duas coisas importantes: aquilo que eu gosto de fazer e aquilo que faço muito bem. Para minha felicidade, as duas são a mesma coisa. Eu amo startups. Especialmente em sua fase inicial. Adoro me sentar na mesa com fundadores realmente inteligentes e ajudá-los a resolver problemas interessantes. E, sem falsa modéstia, eu sou muito bom nisso. Usei essas habilidades ao máximo no início da Netflix. Em 2003, já havíamos feito IPO, contratado pessoas incríveis, a empresa já estava consolidada. Embora eu amasse a nossa criação, não tinha mais o mesmo prazer em trabalhar lá. E talvez o mais importante: não era muito bom nisso. Então deixei a empresa e passei a gastar todo o meu tempo com startups iniciantes, seja mentorando, seja investindo, seja participando de programas de aceleração. E isso me faz feliz.

Em fevereiro, você lançou um podcast chamado That Will Never Work, o mesmo nome de seu livro, de 2019. Qual a sua intenção com esses dois trabalhos?

Você pode pensar no livro como uma autobiografia, mas também como um compêndio de lições para os empreendedores. Depois da Netflix, decidi que não queria ter aquela responsabilidade de novo, cuidar de uma empresa 24 horas por dia, sete dias por semana. Mas não queria deixar o empreendedorismo de lado. Precisava manter aquela parte do meu cérebro ocupada. E percebi que o jeito mais poderoso de fazer isso era orientar outros empreendedores, para ajudá-los a ter algumas das mesmas chances de sucesso que eu tive. Isso não foi uma atitude totalmente altruísta. Eu ajudei essas pessoas, mas foi bom pra mim também, porque me permitiu fazer uma coisa que eu gosto, que é ajudar a resolver os quebra-cabeças mais difíceis. Então escrevi o livro com essa intenção, e o podcast foi uma sequência natural. Hoje, posso auxiliar muito mais empreendedores do que antes, o que é bastante compensador.

Em suas mentorias, você costuma dizer que não existem boas ideias — todas as ideias são ruins. O que quer dizer com isso?

Esse princípio é baseado no fato de que nenhuma startup jamais chega ao sucesso com a sua ideia original. Veja bem, existe essa fantasia maravilhosa no mundo do empreendedorismo. Dois caras estavam sem dinheiro, colocaram um quarto da casa para alugar e boom, nasceu

o Airbnb. Alguém não conseguia um táxi na véspera de Natal e boom, nasceu o Uber. Um jovem decidiu não pagar multa por entregar um vídeo atrasado na locadora e boom, nasceu a Netflix. Todas essas são histórias incríveis — e totalmente falsas. Quer dizer, quando você vai abrir uma empresa, tem todas essas ideias, mas elas são só o ponto de partida. Quase imediatamente, você percebe que aquela ideia não é tão boa, não vai funcionar. E aí começa o verdadeiro empreendedorismo. Essa busca, essa experimentação, essas tentativas repetidas de encontrar um caminho, até chegar ao que pode finalmente ser uma boa proposta. O problema é que muitos empreendedores se apegam às suas ideias originais como se fossem um tesouro que precisam proteger a qualquer custo. E daí fazem pesquisas, ouvem opiniões, escrevem planos de negócios… Um megadesperdício de tempo. Eu não ligo a mínima para quanta pesquisa você fez. O que eu estou procurando é alguém que tenha criatividade para inventar maneiras inteligentes de testar suas ideias. E persistência para fazer isso até encontrar um modelo de negócio escalável.

No livro, você diz que muitos empreendedores demoram demais para abrir um negócio. Por que acha que isso acontece?

É da natureza humana. Ninguém gosta de parecer ridículo. Ninguém quer testar um monte de propostas que não funcionam. Mas é preciso aprender a ficar confortável com essa incerteza. Talvez a melhor analogia seja o que acontece quando você tenta aprender uma segunda linguagem. A não ser que tenha crescido falando essa segunda linguagem, vai passar por aquele período em que soa ridículo, como se tivesse 4 anos de idade. Mas só assim vai aprender alguma coisa. Empreender é assim também. Você vai cometer muitos erros. Mas tem de passar por essa fase. Nada acontece a não ser que você comece. E não adianta ficar inventando desculpas: preciso de um sócio, tenho de achar um investidor, não posso largar o emprego. Sempre há um jeito de começar, descobrir como fazer algo paralelo, de forma simples. O primeiro passo é inventar uma maneira fácil e barata de testar sua ideia. É assim que todas as grandes companhias começam.

Você costuma dizer que o melhor momento para começar uma startup é agora. Mesmo durante uma pandemia? Ainda que seu país esteja atravessando uma das maiores crises econômicas de sua história?

Sim, mesmo assim diria para começar agora. Não me leve a mal, não quero parecer insensível. Eu reconheço

que este é um momento terrível. As pessoas estão ficando doentes, morrendo, perdendo seus empregos, ficando sem nenhum dinheiro, é uma coisa terrível e trágica. Mas a minha resposta à sua pergunta é a mesma que daria a qualquer empreendedor que inventa desculpas para não começar. Se você realmente quer fundar uma startup, não deixe nada nem ninguém te impedir. Procure os espaços abertos. Nesse momento, há enormes oportunidades sendo geradas pelas circunstâncias em que estamos vivendo. As grandes companhias estão passando por dificuldades, então é o momento perfeito para uma disrupção. Por causa das rápidas mudanças pelas quais estamos passando, ninguém tem um modelo de negócio estabelecido. Então, ser novo e pequeno é uma grande vantagem, porque você pode testar coisas muito rapidamente. Para as grandes, é mais difícil.

Em minhas conversas com fundadores de startups, muitos deles dizem que suas empresas cresceram durante a pandemia. A que atribui esse crescimento?

Em tempos incertos, é como se houvesse uma grande neblina sobre todos nós. Só que isso não é novidade para as startups, porque elas trabalham na neblina na maior parte do tempo. O fundador não consegue ver o futuro, porque está fazendo algo que ninguém fez antes. Então ele navega bem no meio da névoa, e cresce ainda mais em tempos de incerteza. Costumo dizer que empreender é como descer uma montanha de bicicleta, em alta velocidade. Você tem de prestar atenção no chão que está bem na sua frente, e de vez em quando deve dar umas espiadas no que está mais adiante. Vejo muita gente tão focada no longo prazo que não percebe o que está diante dos seus olhos. Daí tropeçam em uma rocha e saem voando montanha abaixo.

Os bons empreendedores conseguem fazer as duas coisas: resolver o que está acontecendo agora, no meio na neblina, ao mesmo tempo em que intuem o que está por vir.

Que tipo de pergunta você costuma ouvir com mais frequência no podcast?

O curioso é que boa parte das dúvidas que chegam até mim não estão relacionadas a problemas clássicos, como gestão financeira, marketing ou estratégias de mercado. É algo mais pessoal. Ser um empreendedor é uma tarefa solitária. Você está tentando resolver um problema com o qual ninguém mais está lidando. Muitas vezes, não tem ninguém com quem possa falar honestamente sobre o que está acontecendo. Então eles me procuram para saber como lidar com os sócios, como ter uma boa relação com os conselheiros, como equilibrar sua vida pessoal e profissional. São coisas que não se aprendem em escolas de negócios. Outro dia, em um dos episódios do podcast, recebi a ligação de um empreendedor que está construindo um grande parque de esportes radicais. Ele me disse: “Tenho três filhos com menos de 10 anos, e uma startup que me toma o tempo sete dias por semana, 24 horas por dia. Como vou manter meu relacionamento com a minha mulher e meus filhos?”. Esse é um problema que todo empreendedor com uma família tem.

E qual foi sua resposta?

Expliquei para ele a minha teoria sobre o que acontece quando você corre para pegar um avião. Veja bem, eu trabalhei na Europa durante dois anos, para uma companhia que tinha escritórios em todo o continente. Então viajava quase todos os dias, e claro que estava sempre atrasado para os voos. Daí, corria como um louco pelo aeroporto para chegar a tempo. O que eu percebi é que, na metade das vezes, eu chegava no portão e o avião já tinha decolado. Na outra metade, o voo estava atrasado, e eu acabava ficando sentado lá uma meia hora esperando. Percebi que minha corrida só fazia diferença em 1% das vezes.

O que isso tem a ver com os negócios?

A maioria dos fundadores acha que tem de fazer tudo absolutamente certo. Ele passa a noite toda aperfeiçoando seu pitch, ou revendo o material para uma reunião de negócios. No dia a dia, revisa todo o trabalho dos seus funcionários. O que eu posso dizer, do alto da minha experiência de 40 anos como empreendedor, é que nada disso faz diferença. Quando você percebe isso, se sente livre e entende que não tem de trabalhar tão duro. O importante é ser inteligente sobre as coisas que precisa priorizar. Faça uma triagem: identifique duas ou três questões fundamentais no seu negócio, entre as cem que estão pegando fogo. Concentre-se nelas e tenha disciplina para ignorar as outras 98 que estão gritando pela sua atenção. Se fizer isso, verá que é possível dar espaço para seu relacionamento, seus filhos, seus amigos. Eles não devem jamais ficar no final da sua lista de prioridades. Eu jurei, quando ainda estava nos meus 20 anos, que não seria um daqueles empreendedores que estão na sexta empresa, mas também no sexto casamento. E é por isso que eu nunca corro para pegar o avião.

Em uma entrevista recente, você disse que prefere trabalhar com mulheres empreendedoras. Por quê?

Veja bem, existe um certo conjunto de atributos que eu procuro em todos os empreendedores. Eu acredito que o fundador precisa ter uma autoconfiança inacreditável, para acreditar no seu negócio mesmo quando todo mundo diz que a sua ideia nunca vai funcionar. Mas, ao mesmo tempo, ele precisa entender que os pontos de vista das outras pessoas também têm sua relevância. Você não tem de fazer o que elas dizem, mas deve integrar outros pensamentos em seu processo de tomada de decisões. Na minha experiência, a combinação entre os dois traços é mais comum entre as mulheres. Alguns homens costumam adotar uma postura teimosa, do tipo “Tem de ser do meu jeito”. E eu não quero trabalhar com pessoas assim. Além disso, simpatizo muito com as mulheres que, como eu, ouviram muitas vezes que suas empresas não iam dar certo. Elas enfrentam desafios especiais no mundo das startups. Fico feliz em poder estar ao lado delas nessas batalhas.

Qual é a sua definição de sucesso? O que ainda quer alcançar?

Eu acredito que descobri a fórmula do bem-estar. O que é sucesso, se não ter condições para fazer o que você gosta e sabe fazer bem? Descobri isso quando estava na Netflix. Então, quando não estava funcionando mais, saí. Se ainda estivesse lá, talvez até achasse divertido fazer parte do conselho e resolver aqueles problemas tão interessantes que a empresa enfrenta. Mas a minha vida hoje é fantástica, não consigo imaginar como poderia ser melhor. Troco ideias com empreendedores fascinantes, mas posso ir para casa sossegado à noite e passar todo o tempo que quiser com minha família. Tenho tempo para viajar e me dedicar a incríveis aventuras na natureza. Já estive várias vezes no Brasil, no Rio, em Manaus, Parati. É um país espetacular. Por favor, fale para todos aí que eu estou acompanhando as notícias e torcendo para que fiquem bem. Eu gosto muito do Brasil e desejo o melhor para vocês, de verdade.

ENTREVISTA

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2021-06-04T07:00:00.0000000Z

2021-06-04T07:00:00.0000000Z

https://revistapegn.pressreader.com/article/281771337120303

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