Revista Pequenas Empresas Grandes Negocios

ARTIGO FACUNDO GUERRA

Apesar do arsenal de longos anos de estudo, nosso valor é medido pelo número de seguidores nas redes sociais – e por aquilo que aparentamos ter feito

TEXTO FACUNDO GUERRA ILUSTRAÇÃO JUN IONEDA

Eu, filho de uma família de classe média baixa (o que no Brasil já conta como uma tremenda vantagem), sempre ouvi do meu pai: “Filho, existem dois caminhos para a mobilidade social neste país: estudo ou crime. Não me suje o nome da família, que ele só está emprestado para ti. Estude”.

E estudei, pelos orixás. Sempre me vi como um CDF (cu de ferro, aqueles de bandas da bunda calejadas por conta das longas horas com elas apoiadas nos duros assentos de madeira escolares), gostava de estudar. Logo cedo na vida, descobri que estudar era um tipo de superpoder adquirido: poderia não ter dinheiro, mas teria argumentos para quase tudo. Então lá fui eu fazer engenharia para agradar a meu pai, logo depois jornalismo para agradar a meus amigos, então mestrado e doutorado em ciência política, para me reconciliar com o passado familiar combativo. E, entre todas essas horas com o rabo parafusado numa cadeira, lendo, ainda encontrei tempo de complementar meus estudos com história da arte, história do cinema, da música. Enfim, se tem algo que posso dizer que fiz bem na vida foi estudar. Não tanto para converter essas horas lidas em um diploma, mas para afiar minhas ar

mas na arte da esgrima das línguas: a política (e a argumentação) é uma forma de guerra continuada por outros meios. Se estava disposto a vencer na vida, seria pelo meu arsenal, que ia da engenharia à filosofia política, passando pelas artes e pelo cinema. Eu estava armado de livros até os dentes.

Grande merda. Hoje em dia, meu valor está associado ao fato de ter um número ao lado do meu nome nas redes sociais. Quanto maior o número, mais valioso sou, mais mimos eu recebo, mais a minha vida se torna acolchoada. Olhamos para esses números como a exata medida do valor de um humano. Não importa se cometi crimes (os números aumentarão), se minhas opiniões são fascistas (os números aumentarão MUITO), o que importa é o número. O número, ele pode ser comprado (10 mil seguidores por R$ 250), porque ninguém tem tempo em rede social para ver quem é real ou não é. Aliás, “real” é um conceito absolutamente relativo em termos de redes sociais.

Chegamos ao momento em que o empreendedor não precisa mais ter feito algo: basta aparentar. Então você pode ser o ninja hacker de cripto e irá vender os 12 passos para o mindset milionário, chegar de Corsa no local da convenção, lançar curso com 7 dígitos, e tudo isso só existe dentro do Instagram, porque ele é tudo o que importa. O Instagram e o numerozinho ao lado do seu nome, eles são a realidade. Sua patética vida do outro lado da tela não importa, bem como meu título de doutor. Quem se importa com doutores no dia de hoje, esses seres anacrônicos sem uma conta no Tik Tok?

Licença, que eu tenho que gravar mais um reels, senão meu engajamento cairá, segundo o e-book que baixei ontem, que me ensinou a hackear o algoritmo do Instagram.

SUMÁRIO

pt-br

2021-12-02T08:00:00.0000000Z

2021-12-02T08:00:00.0000000Z

https://revistapegn.pressreader.com/article/281681143159705

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.